É possível comparar doação de gametas a outros tipos de doação, como a de sangue ou órgãos?

É relevante que os profissionais que atuam em Reprodução Assistida possam escutar possíveis doadores(as) de gametas dentro do contexto particular de cada um(a), sem os(as) sugestionar a atribuir significado a seus materiais que não sejam dados por eles(as) mesmos(as), buscando-se evitar conflitos ou fantasmas posteriores.


A razão principal que me levou à escrita deste texto foi o fato de já ter ouvido, inúmeras vezes, profissionais da equipe médica que atuam em Reprodução Assistida e até mesmo pacientes compararem, impensadamente, doação de gametas (óvulos/espermatozoides) a outros tipos de doação de material humano, geralmente sangue ou órgãos. 

Como psicóloga atuante em Reprodução Assistida há mais de 20 anos e com experiência também na atuação em um Serviço de Transplante de Órgãos por dez anos, sinto quase como um dever trazer para reflexão alguns pontos sobre essa temática, considerando, principalmente, o interlocutor que faz esse tipo de comparação dentro do contexto em que se situa.

Pensando a equipe médica e, principalmente, a figura do médico, percebemos que muitos, em uma tentativa de motivar seus(suas) pacientes à doação, acabam comparando gametas a sangue ou até mesmo órgãos. Reforçam a importância desse gesto e o bem que estariam fazendo ao outro, uma vez que esse material não lhes faria falta. 

Considerando a escassez de doação de gametas em nosso país, especialmente de óvulos, é compreensível que o médico busque incentivar pacientes visando obter material para realizar tratamentos de recepção de gametas. No entanto, somente quem poderá dizer em que lugar de representação simbólica encontra-se seu sêmen/óvulo é o(a) próprio(a) paciente.

Para explicar melhor, isso quer dizer, por exemplo, que um médico não pode afirmar que óvulo e sangue são doações do mesmo tipo se, para uma determinada mulher em questão, óvulo e filho são a mesma coisa. Penso ser muito importante que a equipe médica possa encontrar meios de motivar pacientes à doação de gametas; no entanto, dar significado a algo que é puramente subjetivo não cabe a nenhum profissional da saúde.

Viabilizar campanhas públicas falando sobre doação de óvulos e sêmen pode ser um meio de obter pessoas dispostas à doação, uma vez que as que se sentirem tocadas a ajudar o farão a partir de um lugar de identificação com essa causa e também porque concebem seus materiais de modo singular, em que a doação se torna algo não somente possível como também desejável.

É importante considerarmos que para cada tipo de doação há uma representação particular, que se relaciona à história do sujeito e também ao significado simbólico adquirido culturalmente. Assim, por exemplo, doar um rim costuma ter significado diferente do que doar um coração, uma vez que o coração, em nossa cultura, é um órgão que tem associação com a parte afetiva/as emoções, diferentemente do rim. Indo por esse caminho, compreendemos que há uma equivalência simbólica entre filiação e óvulos/espermatozoides que não pode ser desconsiderada, porém, só quem poderá nos dizer se realmente óvulos/espermatozoides são filhos será o(a) próprio(a) paciente, o(a) qual precisa ser escutado(a) antes de uma possível doação.

Refletindo agora a partir do lado dos(as) pacientes, a pessoa que realiza a doação de seus gametas necessita se distanciar emocionalmente desse componente de si, atribuindo um significado de relativa importância para que seja possível a doação; caso contrário, esta pode se transformar em um fantasma no futuro, especialmente se o(a) paciente acreditar que tem um filho seu “por aí”. Assim, na escuta a doadores(as), frequentemente os(as) percebemos atribuindo representação ao seu material como “célula”, “algo que perdem a cada menstruação ou a cada ejaculação”, “parte do corpo”, e até mesmo comparações desse tipo de doação com as de “sangue” ou “órgão”, porém, nestes dois últimos exemplos, quem atribui tal significado é o(a), paciente e não o médico.

Acredito ser relevante que os profissionais que atuam em Reprodução Assistida possam escutar possíveis doadores(as) de gametas dentro do contexto particular de cada um(a), sem os(as) sugestionar a atribuir significado a seus materiais que não sejam dados por eles(as) mesmos(as), visando, assim, que as doações possam se dar de forma espontânea, motivadas pelos desejos de quem as faz, buscando-se evitar conflitos ou fantasmas posteriores.

A escuta psicológica dentro do contexto de doação de óvulos e sêmen pode se mostrar muito útil, oferecendo um espaço para a reflexão sobre a decisão a respeito da doação e suas motivações conscientes (e até mesmo inconscientes), implicadas neste gesto.

Luciana Leis é psicóloga e pesquisadora do Projeto Alfa Medicina Reprodutiva, atual coordenadora do Comitê de Psicologia da SBRH (2021-2023) e coordenadora da Jornada Paulista de Psicologia em Reprodução Assistida desde 2014.

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