Ausência de políticas públicas e falta de cobertura dos planos de saúde: os entraves da reprodução assistida no Brasil

Por Felipe Nabuco

@revistaevolution

O campo de reprodução assistida tem crescido em um ritmo bastante acelerado no Brasil. Nos últimos dez anos, o país mais do que dobrou a realização de ciclos reprodutivos, e as projeções já mostram que, para a próxima década, esse número tende a triplicar, saindo dos atuais 40 mil ciclos/ano para os mais de 120 mil aguardados. Porém, há, ainda, desafios que precisam ser superados para que o Brasil possa, de fato, ocupar um lugar de destaque em seu potencial de reprodução assistida. Dois deles são apontados pela Dra. Madalena Caldas, CEO do Grupo Geare e um dos expoentes no país na temática da reprodução assistida, como prioritários neste processo de expansão da atividade: a educação e o acesso.

Para ela, a falta de acesso da população se reflete tanto no serviço privado, que não conta com a cobertura dos planos de saúde para procedimentos de reprodução assistida, quanto no público, que carece de sensibilidade e olhar estratégico para o tema. “Tanto a nível público quanto a nível privado, deveria haver insumos para que as pacientes pudessem realizar seus ciclos de forma mais rápida e fácil. Isso é um grande entrave que vivemos no Brasil, a questão da não cobertura pelos planos de saúde e a falta do olhar público para essa questão”, salienta.

Ela também fala das dificuldades de se popularizar uma prática que, hoje, depende de pouquíssimos centros para formação de especialistas no país. “Existem poucas residências médicas no Brasil relacionadas à reprodução assistida, a maioria delas concentrada nas regiões Sul e Sudeste. Precisa haver uma equidade de distribuição em todo o Brasil. Essa descentralização do ensino é fundamental para o crescimento dos ciclos de reprodução assistida”, adverte.

Nesta entrevista concedida à Revista EVOLUTION, a Dra. Madalena Caldas, que também é professora e uma das coordenadoras do curso de pós-graduação em reprodução humana do Cetrus (PE),  avalia o cenário de crescimento do mercado de reprodução humana no Brasil. Ela fala sobre a ampliação da demanda por novos especialistas e os desafios ainda colocados para que o segmento possa decolar nos próximos anos. Confira a entrevista completa a seguir.

EVOLUTION  O Grupo Geare é pioneiro na região Nordeste em reprodução assistida, com mais de 20 anos de atuação. Como a senhora avalia o cenário de crescimento do setor ao longo desse período? Quais são os fatores que estão associados diretamente a esse crescimento? 

Dra. Madalena Caldas  O Grupo Geare está completando 21 anos de atuação. Tivemos uma residência médica em reprodução assistida, que foi a primeira residência do Norte e do Nordeste, e todos os médicos que faziam parte da Rede Geare foram preceptores desta residência. O curso funcionou durante dez anos e oferecia duas vagas por ano para especialistas. Formávamos esses profissionais aqui e, posteriormente, eles passavam de um a três meses em atividade fora do país. Depois que essa residência, que era ofertada por meio de convênio de cooperação técnico-científica com o Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), que é uma das maiores instituições de ensino daqui do nosso estado, fechou, ficou essa lacuna na formação de profissionais para atuar no campo de reprodução assistida. A gente sabe que, demograficamente, a população brasileira tem diminuído o número de filhos por casal. As mulheres estão deixando para engravidar mais tardiamente. O próprio comportamento social tem mudado; algumas mulheres não desejam casar, mas desejam ter filhos. Portanto, a prioridade delas com relação à maternidade mudou muito ao longo dos anos e passou a focar nos estudos, ensino, procura por conhecimento na sua área técnica, viagens, casar, comprar um imóvel e ter filhos, não necessariamente nessa ordem. Tudo isso causa uma mudança muito grande no mercado médico, especialmente no mercado da reprodução assistida, porque isso vem de encontro a todo o aconselhamento e avaliação do futuro reprodutivo. Junto disso vem, também, a procura pelas técnicas de congelamento de óvulos. Portanto, faz-se necessário um número maior de profissionais especializados nesse ramo da medicina, que tem crescido pela própria demanda social e pela demanda do mercado de trabalho hoje em dia.

EVOLUTION  Como a senhora avalia o papel da Rede Geare neste cenário de crescimento da atividade de reprodução assistida na região Nordeste?

Dra. Madalena Caldas  A Rede Geare tem tido um papel fundamental no crescimento e na expansão da reprodução assistida no Nordeste do Brasil, especificamente nos estados de Pernambuco, da Paraíba e de Alagoas. Sabidamente, a região Nordeste tem um crescimento menor em relação aos outros estados do país. Muitas pacientes, até uma década atrás, saíam do nosso estado em busca de serviços mais especializados fora da região. Pernambuco se consolidou como um polo médico há muitos anos; então, não poderia ser diferente com a reprodução assistida. A Rede Geare atua justamente aí, desenvolvendo e trazendo tecnologia de ponta. Temos um laboratório de reprodução assistida com os melhores índices do Brasil, igualáveis a níveis mundiais, fruto de muito esforço em tecnologia, em aprendizado e investimento em recursos humanos. O chefe do nosso laboratório de embriologia realizou o primeiro bebê de proveta, como se chamava na época, e tem mais de 30 anos de experiência; isso trouxe um grande desenvolvimento para a nossa região. Fora a questão assistencial das nossas pacientes. Como diretora de laboratório, sempre entendi que o conhecimento deve ser expandido e compartilhado, e foi isso que a Rede Geare fez e vem fazendo nesses 20 anos de atuação. Acredito que o nosso posicionamento enquanto médicos assistentes em uma instituição de assistência à reprodução assistida e, também, como instituição que replica conhecimento, é fundamental para o desenvolvimento da reprodução assistida na nossa região e no Brasil.

EVOLUTION  Qual é a importância do título de especialista (RQE) para atuar na área de reprodução assistida? 

Dra. Madalena Caldas  O RQE é mais uma validação de trabalho. No Brasil, não tínhamos nenhuma qualificação. Depois, vieram os testes de qualificação da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida, que já tinham catalogado todos os requisitos para ter um título de especialista em reprodução assistida. Posteriormente, veio o RQE, que também é uma outra maneira de validar esses profissionais, por meio da aplicação de provas teórica e prática com todos os temas relacionados às questões da reprodução. Acho que é importante que, cada vez mais, a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia e o Conselho Federal de Medicina se preocupem com as subespecialidades. A reprodução assistida, no Brasil, não é considerada uma subespecialidade, apenas uma área de atuação, e vejo com bons olhos que as duas opções, tanto a subespecialidade quanto a área de atuação, passem a contar com médicos capazes de praticá-las da melhor maneira possível. Acredito que é sempre uma possibilidade a mais de fazer com que o médico que deseja atuar nessa área procure mais conhecimentos e tenha capacidade de fazer mais atendimentos.

EVOLUTION  A área de reprodução assistida tem um enorme potencial para se expandir no Brasil. Embora o país venha registrando crescimento, a produção ainda é muito baixa. Com pouco mais de 40 mil ciclos por ano, o Brasil produz, hoje, apenas 10% de sua capacidade. O que está faltando para que a atividade decole nessa próxima década? Quais são os desafios? 

Dra. Madalena Caldas  Vejo algumas vertentes. A primeira delas é a educacional, que a gente já discutiu. Existem poucas residências médicas no Brasil relacionadas à reprodução assistida, a maioria delas concentradas nas regiões Sul e Sudeste. Precisa haver uma equidade de distribuição em todo o Brasil. Essa descentralização do ensino é fundamental para o crescimento dos ciclos de reprodução assistida. Eu vejo que o primeiro grande desafio é retomar as residências médicas e distribuir os alunos. Se não distribuírmos de forma mais equitativa, não vamos conseguir escalar os ciclos de reprodução assistida no país. Outro ponto é a falta de parceria dos convênios com as pacientes com infertilidade. A infertilidade é tratada sempre a nível privado. Os serviços públicos são poucos e não existe um olhar público para essa questão. Também, do ponto de vista de assistência médica, os convênios não encaram a infertilidade como doença, quando tal fato já foi bem definido pela Organização Mundial da Saúde e pela nossa própria Constituição, mas isso é pouco vivenciado no Brasil. Tanto a nível público quanto a nível privado, deveria haver insumos para que as pacientes pudessem realizar seus ciclos de forma mais rápida e fácil. Isso é um grande entrave que vivemos no país, a questão da não cobertura pelos planos de saúde e a falta do olhar público para essa questão.

EVOLUTION  Como a senhora avalia o impacto da pandemia de Covid-19 nesse cenário de franca expansão do mercado de reprodução humana?

Dra. Madalena Caldas  A pandemia de Covid-19 tem sido avassaladora para todas as áreas da economia de uma maneira geral, e ciclos de reprodução assistida fazem parte dessa avaliação. Focando especificamente esse nicho de mercado médico e levando em consideração que o mercado brasileiro é gigantesco, o impacto foi imenso. No primeiro ano, tivemos uma diminuição drástica de 30% a 40% de atendimentos, correspondente à época de lockdown, na primeira onda da pandemia. Porém, também tivemos uma retomada muito rápida, com o crescimento expressivo desses ciclos, provavelmente por conta da demanda reprimida ocasionada por esses meses em que tivemos que ficar parados por recomendações. É importante frisar que, durante essa crise sanitária, podemos aprender muito sobre inovação, tecnologia e comunicação, que são os novos pilares desse mundo pós-pandemia. De janeiro para cá, temos visto, embora não existam pesquisas que possam comprovar na prática, uma retomada dos atendimentos com um aumento expressivo em torno de 30%. Esse aumento também é acompanhado por uma procura grande de mulheres por congelamento de óvulos, por uma preservação social da sua fertilidade. Esse é um movimento mundial e acho que acendeu muito diante da pandemia, por uma questão de não previsibilidade. Hoje, vivemos em um mundo em que não sabemos o que vai acontecer, um mundo muito mais complexo. As mulheres e os casais estão procurando formas de preservar sua fertilidade futura. Algumas pessoas também perderam seus empregos, e isso impacta o número de ciclos realizados, mas a gente também vê uma certa aceleração de todos os processos para tentativa de gravidez o mais rápido possível, especialmente agora que o Ministério da Saúde colocou as grávidas como prioridade na vacinação. Então, vejo isso como, talvez, uma retomada do mercado brasileiro.

EVOLUTION  É possível vislumbrar um futuro em que a prática estará acessível a toda a população brasileira, sobretudo as famílias que alimentam o sonho da fertilidade, mas estão, hoje, longe da realidade financeira? 

Dra. Madalena Caldas  Esse é o futuro que a gente vislumbra sempre. Não sei se a gente vai poder vivenciá-lo no Brasil, com tantas desigualdades, com tantas outras prioridades. Ouvi muito isso e ouço até hoje, já são 30 anos dedicados à área, que a reprodução não é prioridade no país. A prioridade é a necessidade de cada ser humano. Então, não sei se no Brasil, agora, com o grande impacto econômico dessa pandemia, possamos vislumbrar isso tão rapidamente. Vai depender muito dos movimentos econômicos que acontecerem nos próximos anos. Espero que sim, que a gente consiga ter uma sensibilidade maior de todas as autoridades públicas e privadas, para que possamos ter uma melhor assistência. Essa falta de acesso é um problema muito grande, pois, sem o atendimento, a chance de engravidar, pela própria fisiologia, pela própria qualidade e pela quantidade de gametas, limita os nossos resultados. Existe um mercado que cresce muito dentro do Brasil, que é o mercado da doação de óvulos, exatamente porque não estamos conseguindo tratar desse problema com uma antecipação maior. Não posso responder se vislumbro, pois já venho vislumbrando isso há muitos anos e efetivamente não acontece, mas a sociedade vem pressionando cada vez mais esse momento pós-pandemia, que acho que vai ser revolucionário. Vamos aguardar e continuar trabalhando.

EVOLUTION  Qual recomendação a senhora daria para quem está pensando em procurar um especialista em reprodução humana para iniciar o tratamento?

Dra. Madalena Caldas  Primeiro, veja todo o histórico desse profissional, se ele tem efetivamente uma formação acadêmica que o permita trabalhar na área, e minha mensagem maior é que não pense muito. Se você vislumbra, procure já seu médico, seu ginecologista, caso entenda que ele é apto para essas informações. Do contrário, procure centros de referência que tenham um grande número de ciclos e uma boa experiência na área. Informe-se ao máximo, primeiro a nível médico, pois o que temos, hoje, é uma informação muito superficial, oferecida por redes sociais, e esta informação nem sempre é de qualidade. Então, não se baseie nelas porque, como em tudo na medicina, a individualização de informações e tratamentos é muito ampla. Você não pode decidir se colocar no lugar do outro. É fundamental procurar um bom profissional, munir-se de dados para discutir amplamente com ele e tomar a decisão. Se é algo que você quer realmente resolver, que seja algo encarado e levado adiante!

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