Presidente da SBRA, Álvaro Cecchin, explica aspectos legais, éticos e emocionais da técnica que permite gerar filhos mesmo após o falecimento de um dos genitores
O avanço da medicina reprodutiva tem desafiado conceitos estabelecidos sobre vida, morte e família. Entre as possibilidades trazidas por essa área da ciência, uma das mais sensíveis e debatidas é a reprodução assistida post mortem — técnica que permite a concepção de um filho mesmo após a morte de um dos genitores.
A prática é permitida no Brasil, mas segue regras específicas e rígidas. De acordo com a Resolução nº 2.320/2022 do Conselho Federal de Medicina (CFM), a reprodução após a morte só pode ocorrer se houver autorização expressa e registrada em vida para o uso do material genético — óvulos, espermatozoides ou embriões — congelados anteriormente.
Segundo o presidente da Associação Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA), o médico especialista Álvaro Cecchin, o procedimento consiste no uso de gametas ou embriões previamente congelados para viabilizar a gravidez. “Para que o congelamento ocorra, é necessário preencher um termo de consentimento informado no início do tratamento, antes mesmo da coleta de óvulos ou espermatozoides ou da formação dos embriões. Nesse documento, a pessoa ou o casal define o destino do material biológico em caso de morte”, explica. Ele acrescenta que, no caso de sêmen congelado, é possível recorrer à inseminação intrauterina ou à fertilização in vitro (FIV). Já no caso de óvulos congelados, a FIV é obrigatória.
A possibilidade também se aplica quando a mulher é a falecida. Embora a resolução do CFM não trate diretamente dessa situação, Cecchin afirma que o entendimento jurídico considera o procedimento viável com base nos princípios constitucionais de igualdade de gênero. “Nesses casos, a gestação ocorre por meio do útero de outra mulher, preferencialmente parente consanguínea de até quarto grau de um dos parceiros. Quando essa condição não é atendida, é necessária autorização do Conselho Regional de Medicina”, explica.
O presidente da SBRA reforça que o consentimento prévio é obrigatório. “Trata-se de uma exigência legal e ética. Sem esse registro, os conselhos regionais de medicina podem negar o pedido, mesmo que exista o desejo de dar continuidade à família”, pontua.
A ausência desse documento pode levar a disputas judiciais envolvendo familiares, clínicas e até o Estado. “Já houve decisões que permitiram o uso do material, mas a falta de uma norma legal específica abre margem para diferentes interpretações”, observa Cecchin.
Outro ponto sensível está no reconhecimento dos filhos gerados após a morte. Do ponto de vista do direito sucessório, ele afirma que o termo de consentimento é determinante para definir o destino do material genético. “Se houver mudança de desejo em relação ao que foi previamente consentido, será necessária judicialização”, alerta.
Mesmo quando autorizado, o procedimento levanta dilemas éticos e emocionais. “É ético gerar uma vida sem que um dos pais tenha plena ciência ou participação nessa decisão? Como essa criança será acolhida emocionalmente? Essas são reflexões que não podem ser ignoradas”, aponta Cecchin, recomendando apoio psicológico para as famílias.
Apesar dos desafios, ele destaca que a reprodução assistida post mortem pode ser um ato de amor. “Com planejamento, consentimento e acompanhamento adequado, o procedimento pode representar um gesto de continuidade e afeto. Mas precisa ser feito com responsabilidade e dentro dos limites legais e éticos, sempre antes de iniciar os procedimentos de congelamento”, conclui.